É com muito orgulho que apresentamos o quarto episódio do 2º Capítulo do projeto de Storytelling do Café Memória pela Nave16. São mais duas das doze entrevistas com alguns dos técnicos e voluntários do Café Memória.
As entrevistas foram feitas pela embaixadora do projeto, Luísa Castel-Branco e por um membro da equipa Nave16.
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Luísa - Então diga-me lá, posso perguntar a idade, não fica mal?
Ana - Claro, sessenta e nove.
L - Casada, com filhos, sem filhos?
A - Casada, com filhos, marido, netos, tudo a que tenho direito.
L - Tudo a que tem direito. Diria que tem uma vida feliz?
A - Tenho.
L - Então, entrou aqui no Café Memória logo de início?
A - Sim. Eu sou muito curiosa, sou uma cusca, ando sempre à procura de coisas diferentes. Trabalhava num lar, faço voluntariado num lar paroquial em Oeiras e já havia uma grande percentagem de pessoas com demências e uma vez apareceu uma informação de uma palestra sobre o Café Memória, feita pelo responsável, pela mentora, pela Catarina e eu fui lá. Fui lá assistir e depois fiquei curiosa. Mandei uma carta a pensar que a Catarina estava adstrita à Câmara mas não estava. Então a carta demorou mês e meio a chegar à Catarina e quando a carta chegou à Catarina ela ligou-me a pedir muitas desculpas. Tudo bem, eu percebi e disse “Então e agora?”, “Agora venha já ter comigo”. Falámos, formação e estou no Café Memória desde o terceiro mês do Café Memória.
L - Especificamente o que é que faz, explique-me a mim o que é que faz um voluntário do Café Memória.
A - Um voluntário, em qualquer sitio, cumpre uma missão. Desempenha uma função de acordo com aquilo que gosta, às vezes não mas eu não faço aquilo que gosto, faço aquilo que é preciso. Tenho um conceito diferente de voluntariado. O Café Memória tem uma espinha dorsal mais ou menos fixa. Tem sempre uma construção do espaço porque os espaços não são nossos. Portanto construímos o espaço depois as técnicas recebem quem aparece, porque o Café Memória é isso mesmo, um café, vai quem quer. Tem uma espinha dorsal fixa, a seguir recebem seis pessoas, cada voluntário - eu faço qualquer um desses papéis que vou dizer - vai para uma das mesas, acolhe as pessoas que vão para essa mesa. Se são pessoas de primeira vez, preenche uma ficha de primeira vez, se não são pergunta-se sobre o normal, como está, como é que passou este mês, as coisas normais da vida. Depois depende de como vêm as pessoas porque as pessoas normalmente são cuidadores ou são doentes e portanto são pessoas que têm uma carga diária complicada.
L - Qual é o efeito que especificamente o Café Memória tem em si, por exemplo.
A - Em mim, imagine que sou um polvo, tenho vários braços, é um dos braços que eu faço voluntariado.
L - Não lhe traz medos?
A - Medo? Não, não sou pessoa que tenha medos na vida, sou uma pessoa de correr riscos, de aceitar desafios…
L - Medo que lhe aconteça a si.
A - A mim? Não, até acho que é uma probabilidade, se eu ficar muito velha é uma probabilidade. É assim, eu acho que não vale a pena, a gente vive o dia-a-dia, constrói. Esta atividade que eu tenho, que eu tenho uma atividade de doze ou catorze horas por dia, sempre em voluntariado ou com família e alguma parte cultural, porque eu faço teatro, sou presidente de um grupo cultural portanto tenho outra área de intervenção e neste conjunto todo eu acho que estou a desenvolver uma atividade mental e cognitiva e portanto o que eu faço é um trabalho para a minha defesa.
L - Ao mexer os seus neurónios todos está a defender-se. Diga-me uma coisa, esta pergunta é extremamente privada e se não quiser não responde, tem fé?
A - Sim. Sou uma mulher de fé. Aliás, eu só faço tudo isto porque acredito que a minha vida não é isto, isto é uma caminhada de um percurso qualquer que eu desconheço e nesse sentido eu e todos nós temos de convergir para que a qualidade de vida de cada um de nós seja cada vez melhor. Como isso não está a acontecer, nós temos que lutar por isso. Quando as pessoas idosas não têm condições para viver e não têm sequer lares nem centros de dia, quando estão sozinhas (não falo de que têm família) então, isto está tudo errado e como isto está tudo errado, tem de haver pessoas que se preocupem um bocadinho em tentar alinhar…
L - Alinhar aquilo que devia ser…
A - Pronto, mas sim, não tenho medo nenhum. Além disso tento fazer uma alimentação cuidada que é outra coisa que é importante e neste momento já fiz muito desporto e caminhar pelo menos. Eu penso que estes factores poderão ajudar, não sei, ninguém sabe o que vai acontecer mas poderão ajudar. Além disso eu não sei se a minha vida vai ser longa ou curta, vou ter medo de quê? Não vale a pena.
L - E além disso a sua fé… É aquilo que disse há bocado, é preciso construir nos nossos atos, aquilo que será o outro lado.
A - Que não sei qual é mas acredito muito nele. A vida dá-me sinais e são estes sinais, se eu estiver atenta, que me ajudam a trilhar rotas, a fazer opções, a cumprir o meu papel que é uma missão nesta caminhada. Esta é a minha forma de estar na vida. Como eu termino este contexto de uma forma que eu acho que é importante que fique registada, tudo isto que eu faço vale a pena e o Café Memória vale a pena. O Café Memória foi uma coisinha que começou com dois Cafézinhos Memória, hoje tem, não sei se são vinte e tal ou não sei quantos porque já lhes perdi a conta e tem mais um Café Memória itinerante que é mais um bracinho que tem pernas para andar e todo este alargamento desta situação decerto que está a ajudar alguma coisa, está a fazer crescer alguma coisa, que está a caminhar para alguma coisa. É claro que nós somos uma formiguinha no meio da bicharada mas vamos fazendo.
L - Fazem de certeza alguma coisa.
A - Fazer parte deste projeto durante tantos anos é persistência porque vale a pena, - e vou-me repetir - aprender, partilhar, ouvir, vale a pena porque cada sessão, para além do que é dito, é criar laços. Vale a pena porque os participantes voltam, vale a pena porque os cuidadores unem grupos fora do Café Memória e crescem, caminham. Vale a pena porque gosto de ouvir os oradores com dados novos, informações novas, testemunhos diferentes. Vale a pena porque sou anel de uma cadeia que nestes seis anos espalhou sementes por todo o país e ilhas e pôs os mais diversos parceiros formando uma rede que está a dar bons frutos, com uma expansão fantástica e com alicerces profundos e que continua. Faço o que amo, aprendo a amar tudo o que faço e assim é tão fácil fazer o que é preciso, para quem precisa, quando é preciso. Esta é a minha forma de estar na vida e de dar o meu testemunho aqui e em qualquer lugar.
L - Há mais perguntas Mónica?
M - Só mais uma. Ana, uma história que a tenha marcado aqui, que tenha vivido no Café Memória.
A- Há muitas histórias que marcam no Café Memória. Por exemplo, tenho uma pessoa que gosto muito de ouvir falar e que me dá sempre uma paz enorme que é a Margarida Pinto Correia. Sempre que eu ouço a Margarida Pinto Correia, eu vou-me embora… ah…
L - Porquê a Margarida Pinto Correia?
A - Teve uma mãe com demência, fez-nos imensas palestras e a forma como ela aceitou a doença da mãe, interpretou a doença da mãe, caminhou com a doença da mãe, sem dúvida, para mim foi sempre um zen. Pronto, eu acho que é assim que as pessoas deviam lidar com as coisas. Claro que depois há momentos difíceis. No outro dia aconteceu-me uma história muito difícil, uma amiga minha pessoal, o marido morreu. Ela ia com ele ao Café Memória e no mês seguinte resolveu ir e a temática foi complicada e ela saiu de lá sozinha a chorar. Eu nem me apercebi nem consegui ir atrás dela e foi horrível. Pronto, também há estas coisas. Eu costumo dizer e está aqui escrito, a vida é isto mesmo e a balança tem dois pratos, tem um que às vezes nos traz coisas muito boas e tem um prato que também nos dá coisas que nos incomodam.
L - Muito obrigada.
M - Muito obrigada, Ana.
A - Está feito, obrigada também.
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L - Então minha querida, como é que veio parar ao café memória?
I - A minha avó tem Alzheimer, acho que nós sempre soubemos... quer dizer, eu sempre soube que ele tinha, acho que a minha recordação de saber que ela tinha Alzheimer é desde sempre. Mas aquilo não me afetava, eu sabia que isso existia nela, que aquilo lá estava mas nunca me afetou. E depois, quando eu já estava a terminar o curso (direito), a doença que eu já sabia que ela tinha começou-me a afetar também a mim. Começou a ser uma doença que também passou a ser um bocadinho minha porque ela começou a esquecer o meu nome, enfim, foi uma fase difícil pra mim por causa dessa proximidade que eu tinha com ela. Éramos vizinhos, os meus pais e meus avós eram vizinhos então foi uma pessoa como uma mãe pra mim. E nessa altura eu fiquei... foi pra mim um bocadinho quase uma crise existencial. Eu saí do Alentejo pra vir estudar em Lisboa, tinha lá o meu mérito as minhas coisas mas sentia-me impotente. Eu até chegava a pensar: será que isto valeu a pena? Agora minha avó tá lá... Eu não podia fazer muito também, com o curso que eu tinha, o que é que eu ia fazer? E eu refugiei-me na única coisa que eu sabia fazer, que era estudar. E comecei a tentar perceber melhor como é que era e a focar muito em como eu poderia manter uma relação com a minha avó, porque havia uma coisa que eu sabia, que era... ela continuava a estar ali, continuava a ser a minha avó, continuava a ser um ser humano com toda a sua dignidade e a sua individualidade e dignidade e eu que estava bem é que tinha que arranjar uma maneira de continuar a ter uma relação com ela e foi nessa pesquisa que encontrei o site do Café Memória, tava super no início, acho que foi ainda em 2012, vi que estavam a procura de voluntários e pensei: olha que engraçado... Vou entrar nisto! Eu já tinha feito voluntariado, sou católica, fui escuteira então o voluntariado faz um bocadinho parte da minha formação. E pensei: é isso mesmo que vou fazer, vai ser bom pros dois lados. Ou seja, eu vou poder dar alguma coisa a alguns avós de outras netas que estão em outro sítio qualquer a viver o sonho delas e por outro lado vou aprender e conseguir ter uma relação melhor com a minha avó.
L - Conseguiu ter a relação com a sua avó?
I - Sim, a minha avó, por exemplo, uma coisa que eu aprendi aqui é que temos que procurar as coisas que as pessoas mais gostam e aquilo que as ligava. Eu e a minha avó jogávamos muito às cartas. E mesmo quando já ninguém compreendia como, a gente jogava as cartas, não interessava quem é que ganhava, ela até podia buscar quatro cartas à bisca de três, não fazia mal. Mas até há relativamente pouco tempo atrás quando eu ia lá visitá-la, levava um baralho de cartas e a gente jogava. Não interessava. Portanto, talvez haja um reconhecimento afetivo é isso que eu acredito que ela quando me vê, quase sempre ainda esboça um sorriso, abraça, tem sempre vontade de me dar beijos. Mesmo que às vezes me trate por você, coisa que não era normal, mas pronto. Mas temos ainda uma relação.
L - E há quanto tempo a sua avó está assim?
I - Como lhe digo, desde muito cedo que nós sabemos, a mãe dela já tinha uma doença, que não tinha sido diagnosticada, mas que era Alzheimer claramente e a minha avó teve o acompanhamento muito cedo, mas que isto só começou a afetar se calhar aí há 10 anos e há cerca de uns 3, 4 é que ela já está numa fase que já não há quase nada que a gente possa encontrá-la.
L - E com esse sorriso enorme, não assusta que venha a acontecer à sua mãe, a si?
I - Sim, à minha mãe nem tanto, porque a minha avó é mãe do meu pai, mas deste lado da família existem outros problemas e até uma pessoa com 50 anos diagnosticada com uma outra forma de demência que eu nem sei dizer o nome. Assusta-me, é difícil pôr em palavras. Assusta-me, tenho medo disso, vivo com isso. Já disse muitas vezes ao meu marido se ele tá preparado pra isso, porque isso pode acontecer. Mas vivo um dia de cada vez e acho que pode acontecer a qualquer pessoa.
L - Não vale a pena neste jogo da vida, podemos ir a atravessar a rua e ficar debaixo de um carro.
I - Sim, nós nunca sabemos a quantidade de coisas que nos podem acontecer. O meu avô acabou por falecer mais cedo que a minha avó, tinha aqueles problemas da idade, mas não tinha nenhuma doença forte. Esteve lúcido até o final e no último dia, que partiu. E eu vou estar-me a preocupar com isso agora?
L - Faz muito bem! Eu vou deixar a minha amiga aqui, que é inteligente...
I - A Luísa é a simpática?
L - Boa, eu sou a simpática e ela é a inteligente mas ela também é simpática. Ela vai continuar as perguntas.
Mónica - Dona Isabel, já percebi então porque é que veio para o Café Memória. Que momentos momentos é que já viveu aqui que a tenham marcado?
I - Eu acho que quase todos os momentos nos marcam. Mas pra mim... eu sou uma pessoa de pessoas e o que eu guardo mais são as pessoas. Não sei exatamente o dia ou o momento mas há aqui pessoas que são muito marcantes. Há um senhor, que é o Sr. Amadeu, que eu acho que teve aqui convosco, que é uma história de exemplo de tudo. Porque ele, o que não é muito normal na nossa sociedade, ele cuidou da mulher dele até o final, é um cuidador exemplar e ele aprendeu, ele esforçou-se, ele é um exemplo. Quando se vê uma pessoa que é muito forte, que aparece sempre aqui, com uma personalidade forte, combativa, que às vezes nada lhe afeta, que pensamos “olha uma pessoa com quem temos de ter mais... porque ela não admite tudo, as brincadeiras e tudo o mais e que depois há um dia que chega aqui e que chora. Isso é muito marcante. E houve uma situação especial, eu tenho muita pena de não conseguir dizer o nome desta senhora, mas foi uma rapariga um bocadinho mais nova do que eu, que veio dar uma, palestra que me fez identificar, porque ela estudava comunicação e estava a fazer o mestrado em comunicação. O mestrado dela consistia em procurar técnicas de comunicação para a aproximar da avó dela. E eu não consegui não chorar nesse dia, porque era a minha história, mas o que ela tinha feito era ainda melhor. Ela tinha criado umas toalhas de mesa, tinha os desenhos dos gatos e dos patos para a avó conseguir, quando toda gente está a participar no almoço de família, a avó podia pôr a mesa porque via os desenhos. Assim um conjunto de coisas e isso, do ponto de vista pessoal foi um momento muito marcante pra mim.
M - E como é que, vivendo essas histórias todas, depois vai pra casa, como é que digere isso tudo? Como é que se arruma nas gavetas do cérebro?
I - Tirando o papel logístico, eu penso que o voluntário tem que ser a pessoa menos importante. E eu tento vir pra aqui assim sempre, a viagem de carro pra vir até aqui que são 15 minutinhos eu tento procurar algum silêncio e me capacitar que eu vou ter de trazer para aqui algumas coisas, carinho, empatia, capacidade de ouvir, silêncio e alguma resistência. Eu quando saio daqui, normalmente, tenho sempre a sensação que estou um bocadinho mais vazia de energia. Eu sinto que deixei um bocadinho da minha energia aqui. E vou também com um bocadinho de carga, essas cargas são as histórias que estão mesmo digeridas em mim, eu vivo com elas, lembro-me delas, gosto delas, às vezes partilho-as, aprendo com elas e elas integram-me. Portanto, é um peso que só durante algumas horas é que eu tenho alguma, às vezes, angústia com elas, mas depois consigo encaixá-las e viver com elas e pensar que o meu sorriso fez um bocadinho bem àquelas pessoas.
M - É bom deitar-se e saber que por algum momento pode ter mudado um bocadinho a vida de alguém.
I - Sim e para mim então, este voluntariado nunca foi possível fazer isto com a minha avó porque a minha avó é de Évora, de uma aldeia pequena, a minha família não é daqui e eu sinto essa angústia. E eu pensar que eu posso estar a fazer isto por alguém que também tem um neto... sei lá, acho que é uma troca. Penso que com a minha avó já não foi possível mas se calhar o que estou vai rodar, um dia alguém vai fazer com os meus ou comigo e é uma troca social.
M - Obrigada.
I - Obrigada eu.
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